No dia 22/12/2011 foi o lançamento do Livro "Farinha pouca, meu pirão primeiro: à mesa com os Ribeirinhos", de autoria da Profª Nair Gurgel do Amaral, Docente da Universidade Federal de Rondônia. O livro é o resultado de um trabalho desenvolvido pela Profª Nair Gurgel em 10 anos de pesquisa em três
comunidades ribeirinhas de Porto Velho, Estado de Rondônia, a saber: Comunidade de São Sebastião, Comunidade da
Vila de Teotônio e Bairro Triângulo. A propósito o Bairro Triângulo foi onde nasci, cresci e morei até os 19 anos e a Vila do Teotônio, lá na Cachoeira do Teotônio, foi o meu primeiro local de trabalho depois de formada em Pedagogia. Fui Supervisora na Escola Antônio Augusto Vasconcelos por 3 anos e de lá tenho as mais belas lembranças. Mas voltando ao livro, trazer ao conhecimento do "povo urbano" a cultura dos Ribeirinhos através deste livro foi a maneira mais singela de valorizar a diversidade cultural de nosso Estado. Parabéns à Profª Nair e aos demais pesquisadores por nos presentear, mais uma vez, com um belíssimo trabalho. E após nos deliciar com o livro, que tal um Açaí com farinha de Tapioca? Tem sobremesa melhor?
Abaixo compartilho parte do Discurso da Profª Nair Gurgel no dia do lançamento do livro. Achei interessante postar para entendermos melhor a proposta do livro.
A minha fala
constitui-se em um “pós-texto”. Uma reflexão a respeito do processo de
construção do livro e uma explicação aos leitores de seu conteúdo.
O PROPÓSITO: A
Cultura é a única riqueza que os tiranos não podem confiscar.
Este livro
representa e resgata um pouco do muito que devemos às populações ribeirinhas de
Porto Velho, esse povo que é a mistura do que temos de mais representativo em
nosso estado, quiçá do Brasil: o índio, o negro e o migrante de modo geral.
Há mais de dez anos,
realizamos pesquisas, levamos projetos de extensão, principalmente nas áreas de:
formação docente, formação de leitores, valorização da escrita e da cultura das
três comunidades ribeirinhas, a saber: Comunidade de São Sebastião, Comunidade
da Vila de Teotônio e Bairro Triângulo. Durante esse tempo, aprendemos muito
mais do ensinamos. Para nós, respeitar o diferente foi, antes de tudo,
valorizar a singularidade.
Por isso, abraçamos
o princípio proposto pelo antropólogo contemporâneo, o argentino, radicado no
México, Néstor Canclini em “Culturas Híbridas: como entrar e sair da
modernidade”. Com ele, entendemos “a atuação se diferencia ação”. Agir apenas
não basta quando se trata do respeito às minorias – é preciso atuar; estar
junto, fazendo com que eles se sintam integrados socialmente.
Nosso trabalho iniciou
com o encantamento ante as atividades desenvolvidas pelas crianças. Percebemos,
através de seus textos, que ali encontrava-se um sujeito que tinha uma imensa
vontade de compartilhar seu dia-a-dia, contando, de forma singular, seus
hábitos e costumes: as lendas, as festas, as pescarias, a culinária, os frutos
da floresta, o vocabulário. Por isso, o recheio deste livro é uma mistura de provérbios,
coletados nas pesquisas com a fala peculiar portovelhense, juntados aos peixes
mais consumidos e aos sabores mais apreciados.
O TÍTULO: Farinha
pouca meu pirão primeiro – à mesa com os ribeiros.
Como quase tudo
nesse livro, no título, misturamos a cultura popular com a erudita, ou seja, um
provérbio com uma paráfrase ao título do livro do sociólogo pernambucano
Gilberto Freyre, renomado internacionalmente, que publicou “À mesa com Gilberto
Freyre”, onde fala sobre os hábitos gastronômicos do Brasil, misturando
culinária e cultura. A escolha do provérbio deu-se pelo nível de ocorrência nas
pesquisas, somado a isso, a temática gastronômica que de alguma forma se
reveste e a presença significativa da farinha nas comunidades ribeirinhas.
Vários outros
provérbios, também nessa linha, apareceram, assim como os que falam de peixe,
de rio ou os que foram ouvidos pela primeira vez aqui em Rondônia como é o caso
da expressão “Mão de mucura assada”, usado para pessoa sovina ou o conhecido
“pão-duro” e “Terra de muro baixo”, entendida por nós como “lugar de fácil
acesso”, característica cosmopolita do Estado de Rondônia que recebe de forma
acolhedora a todos que para cá vem. É claro que podem existir outras leituras,
a depender do contexto, da intenção do usuário e do interlocutor a quem se
destina a mensagem.
Em nenhum momento,
portanto, nos preocupamos com as ideologias subjacentes aos provérbios, uma vez
que sabemos serem eles de origem popular e servirem a todas elas. Há os que
pregam o egoísmo, o autoritarismo, a ganância, a arrogância. (Quem come do
meu pirão, prova do meu cinturão). Porém há os que recomendam a paciência,
a tolerância, o perdão, a prudência (Peixe grande não nada na beira d’água).
Assim como há os que conduzem ao conformismo, à submissão (Peixe magro não
engrossa caldo). Outros apenas falam de gula, descontroles emocionais,
fugas etc. (Mais sujo que acari-bodó em poço de lama; Mais escondido que
cará-açu em loca de pedra; Mais liso do que bagre ensaboado)
O CONTEÚDO: Puxando
a brasa para a nossa sardinha.
Nosso trabalho se
estendeu além das margens do rio e buscou, na vida da população de Porto Velho,
como um todo, aqui nascidos ou chegados, o traço do hibridismo cultural, na mistura
dos sabores, cheiros, falares e cores. A receita do bolinho conhecido como
“Capitão”, aqui feita com sobras de peixe e farinha d’água, é oriunda das
senzalas – a escrava acrescentava às sobras recebidas, água e farinha para
engrossar e fazer uma espécie de pirão que era moldado em bolinhos para
alimentar as crianças. Da vizinha Bolívia, emprestamos a saltenha, de Portugal,
o famoso Bolo Moka. O quibe, tradicional comida árabe, originou o quibe de
peixe. Do Nordeste, o baião-de-dois, do Amazonas, Pará e outros estados do
Norte, o tacacá, a tapioca, o pé-de-moleque, a farinha d’água, o x-caboclinho,
o mingau de banana, o bolo podre. A diversidade cultural está tão presente em
nossa cultura que nem nos importamos mais com as escolhas vocabulares: se mungunzá
ou canjica, filhós ou bodó, din-din ou sacolé, cruzeta ou cabide, travessa ou
tiara, terçado ou facão etc.
Valorizamos nossos
temperos e condimentos como o colorau, feito de urucu, do qual Rondônia é o
maior produtor do Brasil, o cheiro-verde, a ardosa pimenta murupi, a pimenta de
cheiro, a chicória, o tucupi, o jambu. Eles deixam a comida “No doze” e sem
pitiú.
Destacamos os
peixes mais apreciados: o Acari-bodó, o Bico-de-pato, o Cará-açu, Mandi, Branquinha,
Sardinha, Pacu, Jaraqui, Tambaqui, Jatuarana, Tucunaré, Pirarucu e Dourado.
Mostramos que, na tarrafa, na malhadeira, no anzol ou no arpão, o peixe chega
ao jirau para ser tratado e ticado. Depois, os menores são vendidos em
“Enfiadas de peixe”, mas, se for “Mulher-ingrata”, não se come. A carne é muito
dura. Assim como não são bem vindos o candiru nem o boto. Este último, apreciado
só nas lendas, Mais conquistador que boto tucuxi em festa de beira de rio.
Notamos que para o
ribeirinho, uma caldeirada pode ser apenas um peixe tchibum, a carne
moída vira boi-ralado e o ovo frito, bife do olhão. Mas as frutas
... essas são macetas. Legal que só!, Oh! Tem ingá de metro, araçá-boi,
banana comprida, ouriço de castanha, cupuaçu, graviola, biribá, cacau, pupunha,
tucumã, abiu, azeitona, bacuri, jambo, açaí...
AS RECEITAS: Peixe
gostoso se conhece pelo caldo.
As receitas seguem,
em alguns momentos, o ritmo descontraído com as marcas da oralidade, presentes
nos textos das crianças. E em outros momentos, adquire o formato textual
exigido para o gênero, naquelas gentilmente cedidas pelas pessoas que marcaram
presença nas entrevistas citadas. Algumas dessas receitas, já na condição de
produto final, são oferecidas nas ruas, nas feiras, nos mercados, biroscas,
tabernas e restaurantes ou mesmo nos lares, sendo, portanto, bem conhecidas,
como é o caso da banana frita, da tapioca, do bom-bom de cupuaçu e castanha, do
mingau de banana e todas as outras.
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