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quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Uma viagem de trem



Por: Nair Ferreira Gurgel do Amaral
Universidade Federal de Rondônia

Nem só de café com pão vivem os que já tiveram a passagem de um trem em suas vidas. Um trem pode levar/trazer muitas saudades, algumas mágoas, tristezas, tragédias, encontros e despedidas. Convidamos para esta viagem aqueles que já souberam do trem e aqueles que querem dele saber. Por isso, chamamos a poesia para o vagão dos convidados e com a melodia embalando nossa viagem de lembranças e reconhecimento, ouviremos o canto dos convidados nos dizendo do trem o que sentiu.
Se o trem é caipira, da Central, do subúrbio; se parte às sete ou às onze, se é o maior, o melhor, o trem bala, a maria-fumaça ou a locomotiva, pouco importa. Vale mesmo é a viagem pelas montanhas, atravessando pontes, cruzando matas e florestas - no ar, no rio, no mar, no Madeira, no Mamoré. Os passageiros também são gado, esperança, minério, riqueza, cimento, desenvolvimento, borracha, decepção... O destino será sempre a Estação. Feminina, guarda o dom da espera, do acolhimento e da resignação. A bagagem é tudo ou é nada, é esperança, grande que só... Fumaça, apito, vagão, maquinista, fornalha, locomotiva. Louca motiva: colo moco como cova, mova-se caboclo. 

Piuíííííííííí!...

Vixe Maria! Agora sim. Chegou Bandeira: Bota fogo na fornalha que eu preciso muita força para alcançar o trem caipira de Villas-Lobo e Gullar. Lá tem menino, vida, ciranda, cidade e a noite a girar.

O maior trem do mundo é de Drummond. Leva minha terra para a Alemanha, para o Canadá, para o Japão. Entre encontros e despedidas, Milton manda notícias do mundo de lá e diz pro Fernando que gosta de poder partir sem ter planos e poder voltar quando quer. 

O trem de Seixas vem surgindo de trás das montanhas azuis e não precisa passagem nem bagagem para o céu suspenso no ar. Ói, o trem já é vem no caminho apontado pelas estrelas do cruzeiro que levam ao pantanal de Sater e faz qualquer coração bater desigual, mostrando que o medo viaja sobre todos os trilhos da terra. Mas, como quem anda nos trilhos é trem de ferro, sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito, assim, feito o despropósito de Manoel de Barros que carregava água na peneira ou o delírio de Fagner que nem pensava que o seu desejo era um trem de ferro, que saá de Pernambuco e vinha fazendo fuço-fuco até chegar no Ceará.

Não podendo ficar nem mais um minuto com vocês, peço licença ao Adoniram para partir no trem das onze e chegar à Madeira-Mamoré. Com quem farei essa viagem? Se é domínio popular, chamo todos os “bera” que (en) cantam a ferrovia do diabo: beradeiros artistas vamos na Mad Maria, para o inferno verde, coberto de látex, o ouro transformado em borracha. No 12!

Trem chegou, trem já vai, de retalhos, infantis, abacaxi.

Piuíííííííííí!... Piuíííííííííí!...
Você precisa ver para saber como é que andava o trem na Madeira-Momoré.

De Santo Antônio para um velho porto, retoma-se o projeto para atender bolivianos, escoar a borracha, resolver conflitos. A diversidade se instala na construção da ferrovia e recria o Mito de Babel na Amazônia. Barbadianos, indianos, coreanos, árabes, turcos, gregos ... 

A construção custou o sacrifício de milhares de trabalhadores de diversas nacionalidades. A lenda diz que cada dormente colocado no leito da ferrovia representa um operário morto em sua construção. Será lenda? Será fato?

Tem gente que chega pra ficar. Tem gente que vem e quer voltar. Tem índio, tem flecha, tem mato, tem mosquito, tem malária e tem cachoeira impedindo o trem de passar. Caripuna quer ficar.

Quando finalmente o trem passou, a borracha perdeu valor no mercado internacional. Acabou. Parou. Empoeirou. Enferrujou. Tem gente que veio só olhar o que restou. Não recuperou, o dinheiro gastou, festejou cem anos. De que mesmo? A borracha apagou. O soldado foi enganado e o trem parou.

Estação e trem não se amam mais. O desencontro foi inevitável em Porto Velho, Jacy, Mutum, Abunã, Guajará-Mirim. Prevaleceu o interesse político e o oportunismo. Recuperar para a memória que conta a história do povo que um dia quis um trem e viu seu trem ser de ninguém.

Um trem sem vintém que foi para alguém muito além.
Quem vai chorar, quem vai sorrir ?

Piuíííííííííí!... Piuíííííííííí!... Piuíííííííííí!...

Texto original publicado no Jornal Diário da Amazônia, de 07/08/2012, em homenagem aos 100 anos da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, em Porto Velho/RO

Fotos: Google Imagem